AS MISSÕES NA HISTÓRIA GAÚCHA
As planuras do poncho verde da soja, em pleno planalto rio-grandense,
outrora foram terras cobertas por ervais, habitadas por índios guaranis,
aculturados por padres jesuítas espanhóis, da Companhia de Jesus.
Juntos construíram a história das missões.
Cerca de 2.000 (dois mil) anos atrás, chegaram, ao Sul,
os índios guaranis, provenientes das matas quentes e úmidas da Amazônia.
Queriam eles garantir caça, pesca, terra fértil junto aos rios Paraná,
Uruguai e Jacuí.
Integrados à natureza, homens e mulheres dividiam as
tarefas. Os homens faziam armas, protegiam o grupo, caçavam, pescavam,
guerreavam e preparavam a terra para as plantações. As mulheres cuidavam
do lar, da educação dos filhos pequenos, fabricavam utensílios de
cerâmica, plantavam e colhiam.
Eram eles os donos das clareiras, vivendo em aldeias
formadas por ocas, estruturas de madeira e cobertas de fibras vegetais,
tipo benditos. O seu interior abrigava todos os parentes, era a "grande
família". O mais forte e generoso entre os chefes da família era
escolhido para ser o Tubichá, o cacique. O Tubichá era muito respeitado e
democrático. Suas decisões eram embaseadas na opinião dos mais velhos e
dos chefes de família reunidos num Conselho. As curas e magias eram
ofícios de Caraí, que eram os sacerdotes feiticeiros dos guaranis.
No final do século XV, a ambição dos espanhóis levou-os a
descobrirem a América, em 1492. Logo após, na tentativa de reduzir as
disputas por terras, portugueses e espanhóis fizeram um acordo,
concebido como se a terra fosse tábua de mesa. Foi o Tratado de
Tordesilhas, que dividia a América em duas grandes porções. Nessa época,
ninguém sabia da existência do Brasil, mas, em conseqüência, nossas
terras ficaram divididas. Grande parte do Brasil atual pertencia à
Espanha, inclusive as terras do Rio Grande do Sul, o que só foi
confirmado anos após, com a chegada dos portugueses em 1500.
Na Europa, a Igreja Católica exercia grandes
influências. A fim de combatê-la, surgiu então a REFORMA RELIGIOSA. A
igreja reagiu e criou a CONTRA-REFORMA, promovendo mudanças, através da
criação de novas congregações religiosas. Dentre elas, a Companhia de
Jesus, em 1540, fundada por Inácio de Loyola. Com sua organização
rígida, com disciplina quase militar, a Companhia forneceu
catequizadores (padres jesuítas) para fortalecerem a presença da igreja
Católica e contribuir na ampliação do Império Colonial.
As primeiras visitas para converterem os índios foram
chamadas de Missões, um tipo de catequese, que não trouxe os resultados
esperados pelos padres jesuítas, pois os índios voltavam logo aos
costumes da vida guarani.
O governo espanhol precisava garantir a posse dos
territórios conquistados e defender as fronteiras já estabelecidas, além
de controlar a cobrança dos impostos. Foi por tais motivos que os
espanhóis organizaram as reduções, em locais definidos para controle,
defesa e catequização. A partir das reduções, os padres passaram a ter
mais recursos para defender os índios da ameaça de serem escravizadas
pelos bandeirantes paulistas e pelos encomendadores espanhóis.
Em 1607, foi criada a PROVÍNCIA JESUÍTICA do PARAGUAI,
que se tornou a maior ação social e cultural de catequização de índios
americanos. Os primeiros povoados missioneiros foram fundados pelo
jesuíta Antônio Ruiz de Montoya, nas terras férteis do Guairá,
território do atual estado do Paraná. Outros jesuítas chegaram ao
Itatim, no atual Mato Grosso.
A docilidade dos índios guaranis atraiu a cobiça e a
ganância dos aventureiros, que vinham em busca de escravos. Para se
protegerem das bandeiras de apresamento de índios, auxiliados e
acompanhados pelos jesuítas, os guaranis abandonaram estas regiões e
foram se estabelecer no TAPE, terras do atual Rio Grande do Sul.
Em 1626, o Padre Roque Gonzalez fundou a redução de São
Nicolau, às margens do rio Piratini. Nos dez anos seguintes, surgiram
dezoito novas reduções, dentre elas Assunção do Ijuí, Candelária e
Caaró, onde o Padre Roque foi morto, em 1628.
Tanto esforço e logo tudo é reduzido a nada. Os
bandeirantes Raposo Tavares (1636), André Fernandes (1637), Fernão Dias
Paes (1637/38) e Domingos Cordeiro (1638) chefiaram a agressão indomável
dos índios tupis paulistas contra os guaranis, índios infelizes e
impotentes no enfrentamento com armas de fogo.
Em 1640, dá-se a RESTAURAÇÃO em Portugal. Os missionários
conseguiram autorização do governo espanhol para armarem os índios com
arcabuzes para poder se defenderem dos ataques dos bandeirantes. Os
índios treinados e comandados pelos irmãos jesuítas derrotaram a
Bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros, em 1641, na batalha fluvial de
M’Bororé. Assim, terminou o ciclo de investidas escravagistas, pois os
guerreiros guaranis derrotaram quase dois mil bandeirantes.
Mas as reduções do Tape ficaram arrasadas. Padres e
índios mudaram-se para a margem direita do rio Uruguai, deixando o gado,
que haviam trazido em 1634, graças a ação dos jesuítas Cristóvão de
Mendonça auxiliada pelo Padre Romero. Nas pastagens naturais, o rebanho
solto reproduziu-se livremente, dando origem à Vacaria do Mar, atual
área da pecuária do RS e da República do Uruguai.
Com a autonomia de Portugal, em 1640, ingleses,
franceses, holandeses também foram atraídos pelas riquezas da América. O
tráfico de negros para o Brasil foi intensificado. O Rio Grande do Sul
despovoado e sem riquezas minerais, não despertava mais ambição dos
paulistas. Suas cobiças foram voltadas ao descobrimento de matas e
pedras preciosas. Por tais motivos, não houve mais bandeiras a devastar
nossa região.
Em 1682, os jesuítas e os índios começaram a retornar à
margem esquerda do rio Uruguai, às terras do atual Rio Grande do Sul,
fundando os Sete Povos das Missões. Foram eles:
● São Francisco de Borja (1682); - pelo Padre Francisco Garcia
● São Nicolau (1687);
● São Luiz Gonzaga (1687);
● São Miguel Arcanjo (1687) foi a capital;
● São Lourenço Mártir (1690);
● São João Batista (1697); foi fundada pelo músico e
arquiteto Padre Antônio Sepp, que por ter sólida instrução de música
vocal e instrumental, o que lhe deu grande destaque como músico. Os
instrumentos de sua orquestra foram feitos por ele e seus discípulos.
Extraiu o primeiro ferro das Missões, fazendo instrumentos de toda
espécie, bem como os sinos do seu povo. Sua obra-prima foi o relógio da
torre da igreja que, ao dar as horas, fazia desfilar, pelo mostrador, as
imagens dos doze apóstolos.
● Santo Ângelo Custódio (1706).Antes de fundarem cada
aldeia, os jesuítas cuidavam para que a escolha recaísse em lugares
altos, de fácil defesa, com matas e água abundante. Com alguns índios,
iniciavam as plantações e as construções provisórias. Quando as lavouras
já estavam produzindo, vinham as famílias, que começavam a erguer as
casas projetadas pelos padres. As povoações cresciam em quarteirões
regulares, conforme a arquitetura e o urbanismo típicos dos espanhóis, e
idealizado pelo Padre Roque Gonzáles, muito antes de morrer.
Com o trabalho coletivo dos índios e a coordenação geral
dos jesuítas, surgiram os "30 Povos das Missões", em áreas que hoje
fazem parte do Brasil, Argentina e Paraguai.
A etnia dos Sete Povos foi constituída basicamente pelo
índio Guarani, do grupo Tape. Muitos dos costumes guaranis foram
submetidos ao rigor da orientação religiosa, desestruturando a vida das
famílias indígenas.
O plano urbanístico de cada redução estava assim constituído:
Toda a redução tinha a praça como centro e a igreja como
prédio mais importante. Junto à igreja ficavam a residência dos padres,
o colégio, as oficinas, o cemitério e o Cotiguaçu. A casa dos caciques e
o Cabildo contornavam a praça.
O edifício mais suntuoso, mais vistoso era o TUPÃ-OGA, a
CASA de DEUS, ou seja, a igreja, que cada povo esmarava-se para fazê-lo
mais importante.
Na frente da igreja, estendia-se a enorme praça, onde as
festas, torneios, exercícios militares se realizavam. Cercavam a praça,
em fileiras paralelas, as casas do povo, todas uniformes, feitas de
pedra, com alpendres e cobertas por telhas. Tais casas abrigavam a
"grande família", conforme a tradição indígena. O alpendre de uma casa
juntava-se com a da outra, permitindo voltear um quarteirão sem tomar
sol ou chuva. As casas não tinham janelas, mas tinham de 6 a 8 portas de
cada lado, determinando tantos quartos, que eram necessários para cada
família. As divisões internas eram feitas com couro ou esteiras, se
necessário.
Os indígenas dormiam em redes de algodão, que serviam
também de cadeira, quando não estavam em cadeiras de madeira ou ainda de
cócoras ou no chão.
Num dos lados da igreja, estava o cemitério, em geral a
oeste. Ao lado deste, ficava o COTIAGUAÇU, a casa grande, que abrigava
as viúvas, as mulheres sozinhas e os órfãos sempre numerosos devidos às
constantes guerras com os portugueses e amparados pelas famílias.
No outro lado da igreja, ficava o colégio, em alas,
abrigando-se, entre elas e a igreja, um grande pátio cercado por
alpendre, onde era ministrado o ensino. No colégio, só estudavam os
meninos filhos de caciques e administradores; as meninas aprendiam
"prendas domésticas". Ao lado do colégio, ficavam as oficinas, que
ladeavam também um grande pátio cercado de alpendre, onde trabalhavam os
artistas.
As casas públicas, iguais às particulares, como depósito
de mantimentos de armas, a casa dos caciques e do cabildo. O Cabildo
ladeava a rua central e era a sede da administração municipal, uma
espécie de Prefeitura Municipal.
Na enfermaria, localizada ao lado do cemitério,
atendiam-se os doentes em estado mais grave ou que apresentavam perigo
de contágio. Os doentes comuns ficavam em suas próprias casas, onde os
enfermeiros os visitavam duas vezes ao dia.
Os índios eram enterrados no cemitério, os jesuítas
ficavam enterrados na igreja, junto ao alto mor. Atrás da igreja, os
padres mantinham a horta, o pomar e o jardim.
Nos locais de água, a população construía fontes de pedras para se abastecer, lavar a roupa e tomar banho.
Na periferia da redução ficavam os TOMBOS, onde se
hospedavam os visitantes, para evitar o contato direto dos índios com os
estrangeiros. Era a hospedaria, o hotel da época, nas missões.
Os guaranis das missões deviam respeitar o rei espanhol e
pagar os impostos, através de serviços prestados, construindo
fortificações e defendendo o território. Estavam subordinados aos
governos de Assunção e Buenos Aires, que exerciam uma fiscalização
rigorosa. Em cada redução havia apenas dois padres, um cura e um
auxiliar, para coordenar todas as atividades.
A agricultura mereceu sempre um cuidado especial para se prover à alimentação dos índios.
Como previam as leis espanholas, os índios deviam
trabalhar quatro dias na semana no ABÃ-BAÉ a "Terra do Homem", terras
particulares, que garantiam o sustento da família. Outros dois dias eram
dedicados ao TUPÃ-BAÉ, a "Terra de Deus", terras coletivas, que
produziam alimentos para quem trabalhava no campo. Parte da produção do
TUPÃ-BAÉ era trocada por mercadorias, que não eram produzidas nas
reduções. Uma por ano, uma barca levava para Assunção a Buenos Aires o
excedente comercializado pelos jesuítas.
Os bois e os instrumentos, que utilizavam na agricultura eram sempre de TUPÃ-BAÉ.
Os índios cultivavam milho, mandioca, abóbora, algodão, cana, hortaliças, árvores frutíferas.
A criação de gado fazia-se em estâncias longe dos povos. A
propriedade era sempre da comunidade. A estância de São Miguel era
Santa Tecla, no atual município de Bagé, distante quase 600 km, São
João, no Tupanciretã, e outras. Nessas estâncias também se criavam
cavalos, ovelhas, cabras, porcos, galinhas.
Os índios também se serviam do leite, couro e sebo. Estes últimos eram muito cotados na época.
Em 1709, os jesuítas fundaram a VACARIA dos PINHAIS, em terras do atual município de VACARIA.
Música, canto, dança, teatro, desenho, pintura e
escultura foram os recursos usados pelos jesuítas, como apoio à
catequese. Desde pequenos, alguns índios aprendiam a tecer e a fabricar
instrumentos musicais com cópias originais européias.
Os guaranis tinham capacidade para criar, para copiar.
Eram escultores, cantores, músicos, impressores, pedreiros, ferreiros,
cujos trabalhos evidenciam a presença dos traços culturais indígenas na
produção.
Nessa época, não havia fábrica, mas oficinas e todos
trabalhavam sob a orientação de um mestre. Os guaranis tiveram, como
mestres, muitos jesuítas de formação sólida, nas ciências e nas artes.
Entre eles, destacamos o Padre Antônio Sepp, quem incentivou a música, a
botânica, iniciou a fundição de ferro; o padre José Brasanelli,
arquiteto e escultor; o Padre João Batista Primolli, responsável por
grandes obras, como a igreja de São Miguel Arcanjo. Imprimiram livros,
criaram esculturas, pinturas, relógios de sol, sinos.
Todos os artífices trabalhavam pela comunidade e moravam na comunidade.
O ferro extraído, no povo de São João Batista, foi uma
iniciativa do Padre Antônio Sepp, inclusive sua fundição serviu para a
fabricação do sino e do relógio da igreja, por ele mesmo fabricado.
Nos Sete Povos das Missões, extraía-se erva-mate, ferro e
madeira. A erva-mate era buscada a grandes distâncias como na Serra de
Botucaraí, na área do atual município de Soledade e na mata do Uruguai.
Logo, os índios aprenderam a fazer mudas e plantaram grandes ervais.
A madeira era extraída para o uso do povo e com ela foram
feitas muitas obras de arte como imagens, candelabros e outras.
Os índios Guaranis das Missões vestiam-se conforme a orientação dos padres jesuítas.
As roupas de uso comum eram feitas pelas donas de casa.
Umas faziam o fio, outras teciam. Todas confeccionavam as roupas para o
uso doméstico. As melhores confecções eram reservadas para as viúvas e
órfãs.
O sacristão confeccionava as alfaias da igreja.
Homens e mulheres recebiam, em princípio, um traje por ano e as crianças dois. O tecido e o corte eram uniformes.
Os homens trajavam um gibão e culote, semelhantes à roupa
dos espanhóis e, por cima, uma blusa de pano branco (o poncho dos
gaúchos). As mulheres trajavam um vestido sem mangas, que descia até os
calcanhares, chamado de TIPOY, amarrado à cintura com CHUMBÉ. Não havia
pessoa andrajosa nas missões.
Os índios não se acostumaram ao uso de meias e sapatos, usando - os forçadamente somente em ocasiões especiais.
Nas missões, todos tinham funções, inclusive velhas e
crianças. Além do trabalho na terra, produziam, nas oficinas,
instrumentos, utensílios e roupas. Inclusive os teares ocuparam as
oficinas, servindo-se da lã e do algodão como matéria prima.
Aos domingos, a população era despertada por tambores e
todos assistiam à missa. Durante à tarde, todos participavam de teatros
religiosos, organizavam jogos e danças. Nos dias de festa, a orquestra
tocava. Uma vez por mês, os guerreiros desfilavam armados e faziam
exercícios militares, ou seja, de guerra.
Enquanto floresciam os Sete Povos no noroeste, o litoral
era gradativamente ocupado pelos portugueses. Portugal e Espanha
renegociavam suas posses.
Em 1750, o Tratado de Madrid determinou novos limites na
área do estuário do Prata. Tal acordo causou grande descontentamento
entre índios, provocando a GUERRA GUARANÍTICA, de 1754 a 1756, liderada
por Sepé Tiarajú.
A guerra não resolveu as questões de limites, mas fez
com que Portugal e Espanha voltassem atrás nas suas decisões.
Mas já não existia mais entusiasmo como antes, nem mesmo a condição de vida era as mesma.
Na Europa, cresciam as pressões contra a igreja e os
jesuítas foram acusados de liderarem a Guerra Guaranítica. Com as
manobras políticas, os padres acabaram sendo expulsos dos territórios da
América, em 1767, quando Carlos III, rei da Espanha, assinou o decreto.
Em 1768, terminou o apostolado jesuítico nas missões.
Os jesuítas foram substituídos por curas de outras congregações e por administradores civis.
Assim terminou a prosperidade dos celebrados
aldeamentos, acabando-se a tranqüilidade e o bem estar dos guaranis.
Começou o êxodo. Em 1801, a população era muito pequena na região.
Dos Sete Povos das Missões e as reduções, que existiram
no Rio Grande do Sul, restam hoje vestígios de São Nicolau, São Lourenço
Mártir, São João Batista e São Miguel. sendo este declarado Patrimônio
Histórico da Humanidade, pela UNESCO, em 1983, além do grande acervo de
imagens missioneiras, no Museu das Missões em São Miguel das Missões.
Estudar as Missões e as Reduções é reconhecer os marcos que ficaram na face da América.
O sangue guarani ainda corre vivo nas lendas, na
linguagem, na medicina de ervas, nas cuias de mate, que ganharam grande
importância sócio-econômica em todo o Sul. E, principalmente no fato de a
criação de gado, introduzida pelos jesuítas, ter-se tornado basicamente
na economia gaúcha.
A história das missões é uma das raízes da cultura
regional gaúcha, que faz parte de variedades de culturas, que integram a
identidade brasileira.
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