domingo, 30 de março de 2014

Meu Pai e Eu

MEU PAI E EU
Antonio Augusto Ferreira

Eu fui criado assim, gato selvagem,
nos arredores da cidadezinha,
guri sempre fugido pros potreiros
onde pastavam vacas e cavalos;
e eu por eles já sentia estima
e esse fascínio que até hoje sinto.
Nenhum cuidado me zelava a vida
queria era viver a liberdade,
e aprendi  a defender-me dos perigos
por puro instinto.

A importante pessoa dessa infância
foi meu pai.
Mas meu pai era assim, a lei, o aço,
o que não transigia em meus deveres.
Só sabe Deus o que terá passado
em sua vida pobre. O sofrimento
como que a derrota de uma carapaça
que o fazia parecer imune
à fome e à sede,
para que moldasse o corpo em argamassa.
Hoje penso que a força da cobrança
ensinou-me a esgrimir contra a parede.

As suas bondades
eram dissimuladas aos meus olhos,
que só o viam duro, teso e forte.
Para mim, meu pai era um palanque
assentado à frente do seu rancho,
insensível ao frio ou ao cansaço,
incapaz de desviar-se do seu Norte.

Nem nas amargas maldizia a vida,
nunca lhe ouvimos uma voz de queixa,
pois não se permitia comiseração.
Muito ao contrário, reagia duro:
A vida é uma luta, vence o mais capaz,
o que mais suar sobre sei eito,
o que mais cedo madrugar.

Em pequeno, muito vagamente
lembro seu colo,
substituindo a mãe, que já se fora.
Mas essa imagem me é tão remota
que raras vezes a reconstituo.
O tempo que me vem mais à memória
é o do guri que, mal a lei saía,
largava tudo pra voar na rua.

Eu amava meu pai e na sabia,
ou , se sabia,
tratava de ocultá-lo a mim mesmo.
As manifestações de afeto familiares
pareciam perturbar-me a natureza.

Eu era apenas um menino
que se omitia em demonstrar ternura
temendo que algum gesto de carinho
pudesse confundir-se com fraqueza.

Havia vezes em que eu o odiava
e o rejeitava, ao me sentir sozinho,
porque cobrava cada ato falho,
porque ralhava contra qualquer falta
que pudesse levar-me ao descaminho.

As palavras de meu pai eram tais ordens
que se devia cumprir de qualquer jeito.
Dessas palavras, e dos gestos fortes
ficou-me para sempre esse preceito
do amor ao trabalho e à família.

Mas o trabalho nesses longes tempos,
era de sol a sol, áspera trilha
que se devia abrir com toda a força
e renovado vigor a cada dia,
a vida inteira.

Já a família se agrupava muito,
toda a pobreza era irmã mente repartida
e a dor e a enfermidade eram veladas
em conjunto.

A cada filho que se amancipava
suando seu salário,
o tratamento de meu pai ficava ameno,
talvez mais doce, um pouco mais sereno,
mas a cobrança seguia ao necessário.
Nunca o vi chorar.
Seus sentimentos eram tão cerrados
que foi preciso me fizesse homem
pra desvendar o seu amor imenso.
Esta descoberta veio aos poucos,
a idade chegara para todos
a lei passou então a ser mais branda
e o cuidado talvez menos intenso.

Eu
que me fiz adulto antes do tempo,
saí de casa como um filho sai,
sem saber o quanto a rua me ensinara
nem atinar a força da argamassa
que herdara de meu pai.

Nem eu mesmo sabia de que pedra
eu era feito. Tinha meus sonhos
e a insegurança daquele que
começa,
quando atirei a vida sobre os
ombros
e parti para o mundo a me provar.
O medo de ser frouxo me assustava;
eu sabia que atrás de cada esgrima
havia uma parede
que não me deixaria recuar.

Hoje a vida passou, vou cerro
abaixo,
o corpo vai sofrendo seus estragos,
mas me alegra saber que o coração
é pedra doce – fácil de amoldar,
mas que sofre sozinho nos seus medos
e jamais reparte seus fracassos,
pois não lhe permitiram nunca
o direito de chorar.

É nessas horas
que meu velho volta e me levanta
na palavra:
Assim é a vida, só se vence quem lutar.
Aperta o coração, afirma o braço,
ergue a cabeça e segue em frente.
Lá é teu lugar.

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